As cidades no pós-pandemia
O Estado de S. Paulo, Notas & Informações, 30/ago
Desde tempos imemoriais cidades são associadas a pragas. Afinal, o fim das cidades - a aglomeração humana - coincide com a origem das doenças contagiosas. Sob o impacto da pandemia, há quem acuse no corpo e na alma das metrópoles - a densidade e a pluralidade - uma morbidade congênita, profetizando a sua degeneração. Mas a História mostra que as cidades superaram as convulsões sanitárias não reprimindo, mas revigorando estes elementos cuja fusão faz delas as usinas de energia econômica, política e cultural da raça humana.
"Toda vez que tivemos na história da humanidade essas febres, essas externalidades sanitárias, em que morreu muita gente, sempre vieram proclamadores da desgraça que diziam que esse é o fim da cidade", disse o ex-chefe da ONUHabitat Claudio Acioly Jr., em entrevista ao Estado para uma série sobre cidades sustentáveis. "No entanto, a cidade se reinventou, o homem e a mulher saíram do homo sapiens para o homo urbes, porque somos um ente social em que essa troca social é transformadora, gera relações sociais e econômicas, gera oportunidades, e problemas também, e todas as inovações que temos no mundo nasceram dessas aglomerações."
O problema exacerbado pela pandemia é a tensão aparentemente paradoxal entre a razão de ser das metrópoles - a concentração - e o antídoto contra os contágios - o distanciamento.
A dicotomia entre centro comercial e periferias habitacionais obriga os cidadãos a percorrer longas distâncias aglomerados em transportes públicos na busca por serviços. Por isso ganha força o modelo da cidade policêntrica - a descentralização como remédio para o desmembramento. Bairros autossuficientes descongestionam as artérias da cidade e revitalizam seus membros. A principal pauta da atual gestão de Paris, por exemplo, é transformá-la numa "cidade de 15 minutos", onde escola, trabalho, comércio e lazer estejam a distâncias transitáveis a pé ou por meios simples, como bicicletas.
A equação entre mobilidade e ocupação do solo é crucial para a reconfiguração das cidades. Como apontou Acioly, para otimizar o transporte pode-se intensificar a verticalização em certos locais-chave de conexão modal e reduzi-la em outros, viabilizando um equilíbrio entre as áreas mais ocupadas e as mais verdes e menos ocupadas.
A digitalização acelerada pela pandemia pode ser um catalisador da transformação urbana. Como apontou o urbanista Philip Yang, a proliferação do trabalho remoto e digitalizado permite distribuir horários de tráfego e multiplicar núcleos de convivência urbana. Uma necessidade premente é materializar o ideal das "cidades inteligentes" - sistemas municipais digitais que dinamizam desde a circulação viária e a distribuição de água até sufrágios online e a vigilância de crimes. Trata-se de um mercado vibrante e ascendente que movimenta mundialmente cerca de US$ 190 bilhões ao ano.
Mas tão prioritárias quanto estas ações "horizontais", que abrangem - para agregar - todos os elos da malha urbana, são as intervenções "verticais" contra a segregação da base da pirâmide social. Isso exige investimentos massivos para sanar as debilidades de moradia e saneamento que expõem o tecido civil à virulência da covid-19 e outros males.
Se, como disse o urbanista da USP Jeferson Tavares, "a origem da cidade é a aproximação, a reunião e o encontro", o seu fim - como provaram na carne os cidadãos separados à força pelo vírus - é a desunião e o isolamento. Princípios de sinergia comunitária, como "cidadania", "polidez", "urbanidade" e "política" estão não à toa enraizados etimologicamente nos nomes ancestrais da "cidade" ( polis, urbs, civitas). Propostas como as aventadas acima ou outras devem ser meios para consubstanciar o ideal de "civilização" na hora presente e nas proximidades de cada um. Por isso devem ser orientadas por uma atitude cardeal: resistir à desagregação da cidade em indivíduos atomizados, fortalecendo em todos o senso de congregação numa coletividade orgânica, como membros de um corpo vigoroso.