Reviver Centro: o tempo da cidade, o tempo do mercado e a nova vida dos sobrados históricos

em Diário do Rio, 21/dezembro

Mercado Imobiliário quer mais áreas para aplicar o potencial construtivo obtido com os investimentos no Centro do Rio, mas será esta a principal prioridade para impulsionar sua revitalização?

Desde que foi lançado, o Reviver Centro deixou de ser apenas um programa urbanístico para se tornar um verdadeiro laboratório de reinvenção da cidade. Ao recolocar o Centro do Rio de Janeiro no centro das decisões imobiliárias, o projeto passou a gerar valor onde antes havia abandono, transformando edifícios e terrenos vazios em ativos e abrindo caminho para uma nova ocupação urbana. Como toda política pública que começa a produzir efeitos reais, o Reviver também passou a ser analisado com lupa pelo mercado — muitas vezes com a pressa típica de quem deseja ciclos mais rápidos do que aqueles impostos pelo tempo da cidade, pelo bater do coração da urbe.

Reportagem recente do portal Metro Quadrado chamou atenção para a percepção de alguns incorporadores e construtoras de que estaria faltando endereço para absorver todo o potencial construtivo gerado pelo programa em outros bairros, através da chamada Operação Urbana Interligada. A observação faz sentido do ponto de vista estritamente mercadológico: os créditos existem, os incentivos estão dados, mas as áreas receptoras autorizadas ainda são relativamente limitadas, e os terrenos disponíveis em bairros mais consolidados nem sempre se encaixam nas equações de novos projetos. O debate, no entanto, talvez revele menos uma falha estrutural do Reviver e mais um descompasso natural entre a velocidade do capital e o ritmo da transformação urbana.

Esse olhar mais cauteloso é o mesmo adotado pela Prefeitura, que sustenta que o programa ainda está em fase inicial de maturação. Não por acaso. A requalificação de centros históricos, sobretudo em cidades com a complexidade patrimonial do Rio, raramente se resolve em poucos anos. Ela exige tempo, ajustes progressivos e, principalmente, a entrada gradual de novos instrumentos capazes de ampliar o alcance da política urbana, além da observação de seus efeitos em todo o território afetado.

É justamente nesse ponto que entra um elemento fundamental — e ainda pouco assimilado por parte do mercado —: o Reviver ProApac Patrimônio, que começa agora a produzir seus primeiros efeitos concretos. O programa, lançado com os leilões de imóveis históricos em mau estado ou subutilizados no Centro, inaugura uma nova frente de transformação urbana. São sobrados e casarões de importância cultural inegável, muitos deles há décadas relegados à degradação, que passam a ser arrematados por investidores privados sob um regime de incentivos pensado exatamente para viabilizar sua recuperação. Mapeados através de Edital Público, estes imóveis somariam mais de 300 prédios.

A lógica é conhecida e testada em outras cidades do mundo. Em Barcelona, em Lisboa e em diversos centros históricos europeus e na própria América do Sul, a requalificação dos edifícios antigos passou, necessariamente, pela valorização das suas partes superiores — os andares que durante décadas foram tratados como um apêndice sem valor econômico. No Rio, não foi diferente. Mesmo no auge do boom imobiliário do Centro, entre 2011 e 2015, as lojas no térreo destes sobradões concentravam todo o valor, enquanto os pavimentos superiores eram alugados a preços irrisórios ou simplesmente oferecidos como um “brinde”, quando não permaneciam vazios e deteriorados. Seus lotes com pouca frente e compridos são de difícil adaptação, sem um programa de incentivos.

O Reviver ProApac Patrimônio rompe com essa lógica histórica. Ao estimular a recuperação integral desses imóveis, ele abre caminho para algo inédito em escala: a transformação das partes superiores dos sobrados históricos em moradias. Apartamentos charmosos, inseridos em edifícios carregados de memória, mas sem a estrutura de lazer e os custos elevados dos grandes condomínios modernos. Por sua própria natureza, esses imóveis tendem a chegar ao mercado com valores mais acessíveis que os grandes lançamentos, ampliando o espectro social de quem pode voltar a morar no Centro.

A estimativa de preços — há quem fale em torno de oito ou nove mil reais o metro quadrado, contra valores que já ultrapassam os quatorze mil em grandes empreendimentos — aponta para um tipo de moradia capaz de atrair um público diverso, que até agora ficava à margem do processo de reocupação da região. Trata-se de um passo decisivo para evitar que o Centro se torne um território exclusivo e homogêneo, restrito apenas a grandes projetos ou a nichos de alto poder aquisitivo. Deixar bonito não precisa deixar impagável. Claro que a gentrificação ocorre em qualquer requalificação urbana, mas isto é uma forma de mitigá-la sem a insanidade trazida à tona pela extrema-esquerda.

Visto por esse prisma, o Reviver Centro ganha uma camada adicional de complexidade e potência. Ele deixa de ser apenas um programa de conversão de grandes edifícios ou de estímulo a novos condomínios e passa a atuar também na escala fina da cidade histórica, recuperando os sobrados que formam o tecido original do Rio de Janeiro — verdadeiros testemunhos do berço da civilização urbana brasileira. Os cenários formados por estes sobrados – assim como museus e igrejas – é que atraem os turistas, e não a fachada espelhada do imóvel comercial ou a varandinha do apartamento recém construido. Esse colorido histórico traz com mais facilidade os bares, os restaurantes, os eventos e a arte, que são também acessórios indispensáveis.

Nesse contexto, a avaliação da Prefeitura de que ainda é cedo para mais revisões profundas no programa que concedam mais vantagens à Construção parece menos uma resistência às demandas do mercado e mais uma leitura atenta do momento que a cidade atravessa. O Reviver não é um instrumento estático, mas um processo em construção, que vai incorporando novos ingredientes à medida que amadurece. O ProApac Patrimônio é um desses ingredientes, e talvez o mais simbólico deles. O que deve ser visto agora é como favorecer o comerciante que já tem seu negócio na região; como diminuir o absurdo IPTU que é cobrado no Centro do Rio como se os imóveis valessem o quádruplo do que valem; como ocupar os lojões que eram ocupados por bancos e pagam 20, 30 ou 40 mil de condomínio.

Se hoje o debate gira em torno de onde aplicar o potencial construtivo, é porque o Centro voltou a gerar valor — algo impensável há poucos anos. E se novas frentes começam a se abrir com a requalificação dos sobrados históricos e a inauguração dos novos grandes empreendimentos, talvez a cidade esteja apenas começando a revelar as respostas que o mercado ainda procura. Ajudar a salvar quem já está no Centro, trazer moradores para imóveis mais em conta, provocar a abertura de mais lojas e mais fachadas vivas e fortalecer a gastronomia e o entretenimento são pontos vitais que talvez devam ser, neste momento, a prioridade.

No fim, o tempo do Reviver parece ser menos o da urgência e mais o da permanência. E, nesse compasso mais longo, o Centro do Rio vai, pouco a pouco, reencontrando sua vocação de lugar vivido, habitado e diverso.


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